segunda-feira, 23 de novembro de 2009

POIS É


[Uma crônica, coisa que não fazia há anos.
Para ler ao som de “Don’t Dream It’s Over, de Crowded House]


Acordei tarde, bem mais tarde do que esperava e ainda com aquela dorzinha chata na lombar. A luz, como que para irritar, escapava à cortina e me atingia o rosto. Qual era a minha lista de coisas para o dia mesmo? Hum, roupa na lavanderia, ler aquele artigo chato, lavar a louça, me preparar para a aula de amanhã. Era preciso regrar tudo para não deixar que o marasmo, o tédio e as lembranças me assolassem o dia.

Havia acabado um namoro de dois anos e há seis meses não nos víamos. Apenas conversas esporádicas pelo messenger, respostas evasivas, e um afastamento contínuo e doloroso. Precisava me ocupar o tempo todo ou me tornaria, mais do que já era, um imprestável.

Resolvi, então, levantar de uma só vez, espreguiçar-me, fazer um alongamento rápido para ver se a dorzinha me abandonava ao menos por um tempo. Fiz um café e me concedi pôr um pouquinho de pó de amêndoas (sou amplamente adepto das políticas auto-compensatórias, capice?).

Olhei minha gata enquanto o café coava e constatei que ela me propunha claramente uma luta de olhares with laser! Ela, sem piscar, me olhava diretamente aos olhos e eu comecei a mirá-la bem nos globinhos amarelos:

- Ah, é!? É assim, é!? Então vamos ver quem vai ganhar, sua gata safada!

- Miow... - respondeu lânguida e baixando o olhar.

- Nossa, hoje foi fácil, hein!? Sua fracote...

E fiz um carinho na cabecinha que se doava ao toque.

Precisava me pôr em movimento ou viraria um vegetal no resto do dia. Tomei o café olhando pela sacada para mais um dia cinza-paulistano e então reuni uma montanha de roupas sujas que levaria para a lavanderia quatro quadras acima, na minha rua mesmo.

Desci as escadas do prédio ouvindo Lion in a Coma do Animal Collective (great, energética!) e cantarolando a letra, abri a porta, saindo à rua. O dia parecia mais iluminado do que no apartamento (lembrei dos dark glasses, mas não voltaria buscar...) e as pessoas estavam um pouco mais sorridentes do que de costume. Involuntariamente me senti de melhor humor.

Subi a rua, vagaroso e mirador. Vi o tio coreano da venda, que se vestia meio como um boxeador, sério e de olhar bravio – sempre o imagino assistindo à exaustão os filmes do Rocky 1, 2, 3, 4... Funny... - Não o cumprimentei, é claro... Mesmo de bom humor ninguém se cumprimenta nessa cidade...

Dona Marli, cabeleireira - há nome mais perfeito que “Marli”, para uma cabeleireira? Acho perfeito! Exato! Se eu quisesse fazer um permanente só iria nela, que já pelo nome transmite know-how e confiança sem igual! - ajudava uma cliente sua, velhinha, a enfiar a cabeça no secador, sempre sóbria e bem maquiada.

Passei também por um homem mais velho, cabelos brancos, mas jovial, que está sempre sentado na entrada de um edifício, com uma bengala. Usa roupas moderninhas e parece íntegro, confiável, enfim, deu-me vontade de parar e do nada começar a conversar com ele, mas, é claro, não tive tanta coragem e segui para a lavanderia com um sorrisinho alegre de canto de boca.

Em pouco tempo invadiu-me a mente a vontade de que fosse a dona da lavanderia que me atendesse, e não a gerente – que era uma grosseirona de marca maior. Porém, assim que cheguei à porta vi a gerente com seu olhar de peixe-morto e sua cara de má-vontade. Disse-lhe um bom dia e ouvi um grunhido de resposta. Ela que acabava de deixar ao chão um saco de roupas de uma moça que estava no balcão veio até mim e pegou a sacola que lhe estendia.

Olhei para o lado e vi que outra cliente era a vizinha nova, do apartamento 6, logo acima do meu e a cumprimentei. “Bem que me disseram...”, pensei, era verdadeiramente bonita: uns olhos que ardiam, como aquelas pessoas que têm inquietações existenciais, olheiras leves, devia ter lá os seus um metro e setenta, magra, mas não demasiado, talvez 26 ou 27 anos e quando sorria era de um encantamento desconcertante. Venci a timidez e perguntei:

- Você é do 6, não é? – e sorri.
- Sim, sim... Mudei ontem. Você é do...?
- Do 4. E... E então, está gostando da região?
- Ah, sim... Aqui é meio perto de tudo, não é? Metrô, teatros, cinemas e tal. Acho que vou gostar bastante, sim... Mas... Qual é o teu nome mesmo?
- Ah, pois é... Leo, e o seu?
- Lisa. Bom, é Elisabete, mas pode chamar de Lisa, mesmo. – e estendeu a mão.

E nesse ponto a gerente nos interrompeu:

- Olha, moço, eu já pedi pro senhor separar as peças, to vendo aqui que o senhor deixou cueca com camisa, com toalha...
- Ah, pois é... Desculpe, é que eu saí meio com pressa e esqueci de separar.
- Da próxima vez vê se não esquece. Agora eu vou ter que separar aqui...

E então, para meu espanto, começou a tirar as peças de roupa e pô-las sobre o balcão, sob as minhas vistas e as de Lisa, iniciando logo pelas cuecas... Rangi os dentes de imediato e pensei comigo: “Vaca, maldita! Vai fazer isso de propósito para se vingar!” e fiquei completamente constrangido: minha vizinha e um senhor que acabava de chegar observavam minhas cuecas sujas sendo jogadas compulsoriamente bem na minha frente.

- Moça, é preciso fazer isso agora mesmo?
- É preciso sim! Não seria preciso se já viesse separada!

Silenciei roxo de ira, sentindo ganas de lhe espremer o pescoço ali mesmo. Lisa então, visivelmente com pena de mim, perguntou quanto devia pelo serviço ao que a "abençoada" da gerente respondeu dizendo que podia pagar quando retirasse as roupas. A vizinha então se virou rapidamente para mim e disse:

- Legal te conhecer, Leo!

E eu, sorrindo amarelo e ainda meio atordoado e constrangido (a gerente pegava da sacola exatamente a última cueca – branca – que restava), respondi:

- P...Pois é...

E seguiram-se uns dois segundos do mais denso silêncio...

- Tá, a gente se fala. Até mais! – disse-me, acenou e se foi. E eu fiquei pensando comigo mesmo: “Pois é!?” Não havia algo melhor a se dizer que um “pois é”!? Por favor, Leonardo! Virei então para a gerente e com olhos crispados, disparando mísseis orientados bastante concretos, metralhei em bom som:

- Vamos lá, minha filha que eu não tenho o dia todo, não! É pra hoje?! Tô com pressa! Vou reclamar para a dona Sofia dessa sua lerdeza!!!

Toda a minha grosseria contida ao longo de décadas foi regurgitada sobre a “doce” gerente, que me olhou com seus olhos de peixe morto, grunhindo alguma coisa incompreensível e continuando a executar tudo com a sua habitual má vontade. Eu, então, já não a olhava, estava olhando para dentro de mim.

Constatava que definitivamente havia arruinado meu dia.


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P.S. Ilustração (autor desconhecido) retirada do site: http://jornale.com.br/horasonora/?p=1789)

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