segunda-feira, 1 de março de 2010

Do Rubro


Ilustração de Josh Keyes


[um conto meu - sem pretensões e revisões - feito há uns 8 anos, para abrir 2010 e reanimar o blog...]

- Mas o que foi que cê foi fazê lá, criatura!? – e a mulher sacudiu o filho roxo da porrada. – Mas que bicho burro! Que é que foi se meter com Seu Junio! – e levantou o rosto magro do rapaz. Estava envergonhado com a aproximação do resto da família. – O que é que foi, Tereza!? – então, a tia Morena viu o nariz sangrando. – Santa Mãe de Deus! Que fizeram com o meu Mateus!!? – e assim todos se alarmaram. Perguntaram muito, todos ao seu redor, mas com tanto alarde e exclamações que uns interrompiam os outros e ele se via em sorte de nada ter de explicar. Tia Cecília com o lenço sujo e mofado lhe esfregou, sem cuidados, o nariz quebrado. Por fim, ainda trêmulo, se equilibrou sobre as pernas e foi se afastando, vagaroso, para seu quarto, segurando o pano imundo - agora rubro - sobre o rosto latejante.
Perdera os óculos, quebrados no imbróglio. Via os detalhes das paredes do corredor, todos borrados pela miopia, aborrecendo-o profundamente. Era um ser eminentemente visual: as cenas traziam distrações para as chateações cotidianas. Assim, sem poder ver a beleza simplória do dia-a-dia, se repetia a imagem mental do “quebra-pau” público. Nunca participara de uma luta sob o olhar de tantas pessoas (na verdade nunca participara de luta alguma. E houvera apanhado).
Seu Junio comentara, para provocar, que era ele o filho do presidiário. Pela terceira vez o homem o acusava em alta voz. – Esse daí não vai dar melhor, não. Deviam criar uma pena preventiva presse tipo de gente. – Ao ouvir, sentiu-se novamente como quando, sem os óculos, tivera que correr de um dos touros do avô: aguçara todos os instintos para se salvar. As palavras do feirante foram demais para o pacato rapaz. Que fizera para que o humilhassem? Nem se deu conta de como, mas em um instante estava agarrado aos cabelos do homem, enfiando-lhe o rosto nos tomates da barraca, joelhando-lhe as costelas e gritando todos os palavrões que lembrava. Todo o bairro concentrado na feira, em segundos, se reuniu em frente à barraca. Então , a situação cambiou e lá estava o homem imobilizando-o no chão: – É isso mesmo, seu marginalzinho de merda! Já é igualzinho ao pai ladrão! Mas se a lei não chega até tu, deixa que eu te ponho na linha! – e viu o rosto irado do homem coberto com o vermelho do tomate e seu punho se levantar.
Acordou sobre o chão sujo de restos de verduras com tapinhas no rosto de um vizinho velho que tentava levantá-lo. Pôs-se de pé rápido e viu seu Junio de costas, apoiado na mesa de verduras, arfando. Sem pensar duas vezes, correu em sua direção e lhe chutou os colhões com todas as forças, gritando em seguida: - Filho da puta! Degraçado! Maldito, lazarento! - Saiu, então, veloz sem olhar para trás e empurrando todos (o grande show do domingo).
As silhuetas das vizinhas vinham ao seu encontro pelas calçadas, borradas. – Menino! O que foi!? – era a dona Margarida (reconheceu, pois não havia outra mulher tão gorda no bairro) e acelerou a correria. - Só queria ver direito! Ver sem usar os malditos óculos! - Pensou ter visto tio Frederico, mas o homem o ignorou. Passou a mão sobre o sangue nos lábios e no queixo, visgo quente. Dentes cerrados, corrida desenfreada. Perguntava-se os motivos de apenas ele precisar daqueles óculos - Por que não ser como Tiago, Marcelo ou Pedro, que nunca se preocupavam em encontrar os malditos óculos para se levantar de manhã? - Olhou para o morro, viu os telhados da vizinhança e lembrou que seria um árduo expediente seu contato familiar naquela situação. Então, absorto e ainda correndo, chutou um cachorro que não vira, perdeu o equilíbrio e acertou um poste, ficando caído colorindo a calçada.
Voltou a si na sala de sua casa, no sofá, com a cabeça explodindo, a camiseta branca ensopada de um úmido e quente e alguns vizinhos jovens deixando-o com a mãe. Sentou-se e começou a ouvir todo o alarido previsto - Os óculos... Onde estão os malditos óculos? - As imagens mentais... Era o inferno definitivamente. Tremendo e cambaleando se trancou no quarto.